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Paola Jochimsen

Paola Jochimsen é doutoranda em Filosofia pela Universidade de Coimbra, Mestre em Romanistik pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg (Alemanha). Membro do Coletivo Brasil-Alemanha pela Democracia.

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Nem todo mundo pode falar: o racismo estrutural na militância global

Por muito tempo, olhei com desconfiança para Greta. Hoje, com tudo que está em jogo, prefiro dar o braço a torcer

A ativista sueca Greta Thunberg, que partiu de Israel de avião na terça-feira após ser detida a bordo do iate de bandeira britânica "Madleen", com destino a Gaza, depois que forças israelenses abordaram o navio de caridade que tentava chegar à Faixa de Gaza, desafiando o bloqueio naval israelense, conversa com jornalistas cercada pela polícia sa ao chegar a um terminal do Aeroporto Paris-Charles de Gaulle, em Roissy-en-, perto de Paris, França, em 10 de junho de 2025 (Foto: REUTERS/Gonzalo Fuentes)

A bordo do veleiro Madleen, operado pela Coalizão Flotilha da Liberdade, um grupo de ativistas climáticos e humanitários foi interceptado por Israel antes de chegar a Gaza. Entre os participantes estavam a sueca Greta Thunberg, o brasileiro Thiago Ávila, a franco-palestina Rima Hassan, os ses Yanis Mhamdi, Baptiste André, Pascal Maurieras, Reva Viard e Omar Faiad, a alemã Yasemin Acar, o turco-alemão Suayb Ordu, o espanhol Sergio Toribio e o holandês Mark van Rennes. Não estou falando apenas do cerco brutal à Palestina. Falo da seletividade da escuta global. Quem pode falar? Quem pode ser ouvido? Quem é autorizado a representar causas universais?

Greta Thunberg, por exemplo, sempre me causou ambivalência. De um lado, era evidente sua coragem e persistência em colocar a crise climática no centro do debate público internacional. Mas algo ali me incomodava profundamente. Era impossível ignorar o fato de que aquela adolescente sueca era ouvida porque era branca, europeia e de classe média alta. Enquanto isso, os que já vinham morrendo por causa da emergência climática continuavam fora do campo de escuta. Povos indígenas, comunidades ribeirinhas, habitantes de ilhas ameaçadas pela elevação do nível do mar, migrantes climáticos da África e da Ásia, crianças que crescem entre enchentes e estiagens extremas.

O mundo se comoveu com a imagem de uma jovem que previa um colapso, mas ignorava os jovens que já o viviam na pele. Enquanto isso, ativistas ambientais e sociais do Sul Global, indígenas da Amazônia, militantes africanos ou refugiados climáticos, continuavam e continuam sendo silenciados, ignorados ou criminalizados. Sim, há algo de profundamente racial nessa diferença de escuta. E Greta, consciente disso ou não, encarnava um paradoxo: tornava visível uma causa invisibilizando outras vozes.

Quando o ativismo rompe sua zona de conforto

No entanto, algo mudou bruscamente. Greta, que surgiu aos olhos do mundo como uma adolescente corajosa e determinada a salvar o planeta, começou aos poucos a deslocar seu discurso. No lugar das falas centradas apenas em metas climáticas, consumo consciente ou responsabilidade individual, ou a fazer perguntas incômodas: quem lucra com a destruição ambiental? Quem paga essa conta? Quem morre?

Esse deslocamento foi sutil, mas profundo. Porque deixou de apontar apenas culpados imediatos e ou a questionar a lógica que organiza o mundo. A crítica ambiental começou a ganhar corpo, a se politizar, a tocar em temas estruturais. Greta começou a conectar as crises ecológicas às crises sociais, raciais e coloniais, deixando claro que não se trata apenas de salvar o planeta, mas de confrontar o modo como vidas são hierarquizadas para que esse planeta continue girando a serviço de poucos.

Foi nesse contexto que veio a declaração sobre a Palestina: “o que acontece lá é uma questão de racismo”. Nesse momento, sua militância rompeu com a zona segura do ambientalismo técnico e moral. Pela primeira vez, vi nela uma leitura que deixava de ser ética e ava a ser estrutural, com ressonâncias marxistas. A questão já não era apenas climática, era civilizacional.

E foi justamente aí que Greta deixou de ser a “queridinha” do Ocidente. Enquanto denunciava o colapso ambiental em termos genéricos, ela era celebrada, premiada, protegida. Mas ao nomear o racismo como estrutura, e portanto como parte inseparável do sistema capitalista global, Greta rompeu com o papel confortável de adolescente exemplar da Europa nórdica. Sua fala ou a incomodar não por ser agressiva, mas por ser coerente demais. Porque quem leva a sério as estruturas, mais cedo ou mais tarde, precisa confrontar o capitalismo, o imperialismo e os pactos raciais que sustentam o privilégio ocidental. E isso, como sabemos, tem um custo: o silêncio da mídia, o afastamento de aliados, a perda de apoio institucional.

Essa guinada é significativa. Porque, ao nomear o racismo como um sistema, Greta toca no coração de um problema que não é apenas climático, político ou geopolítico. É civilizacional. Desde a escravidão transatlântica até o genocídio indígena nas Américas, da colonização europeia da África e da Ásia até o apartheid na África do Sul, da segregação racial nos Estados Unidos até o nazismo na Europa, da islamofobia institucional até a política colonial que ainda estrutura a ocupação da Palestina, tudo converge para uma mesma lógica. A lógica da produção e da hierarquização das vidas. Algumas merecem ser protegidas. Outras, não.

É por isso que os ativistas negros, indígenas, árabes ou ciganos são silenciados, mesmo quando gritam. Porque o sistema que define quem pode ser “porta-voz” é o mesmo que regula o valor das vidas. E é também por isso que tantos se irritam quando uma figura como Greta rompe com o papel confortável de “menina exemplar da Europa nórdica” e decide se posicionar contra o genocídio de um povo que, para o Ocidente, é mais fácil associar ao terrorismo do que à resistência.

Mas sejamos honestos: o problema nunca foi apenas a Greta. O problema é o espelho que ela nos obriga a olhar. Porque nós — e digo isso me incluindo — muitas vezes reproduzimos a lógica que criticamos. Damos mais atenção a quem fala com sotaque europeu. Achamos mais convincentes os argumentos vindos de universidades americanas. E mesmo quando nos dizemos antirracistas, raramente aceitamos abrir mão dos privilégios que a branquitude nos oferece.

A esquerda europeia, por exemplo, teve dificuldade em assimilar que a questão palestina é, antes de tudo, uma questão racial. Preferiram tratá-la como um conflito territorial, uma disputa religiosa ou uma falha diplomática. E, no entanto, tudo ali responde à lógica da racialização. O apartheid, a limpeza étnica e os bloqueios são expressões diferentes de uma mesma estratégia: desumanizar para dominar

Quando a denúncia incomoda mais do que a violência

Por isso, o gesto de Greta importa. Porque ela atravessou uma linha. E mostrou que a militância não pode ser seletiva. Quem luta pelo clima tem que lutar contra o racismo. Quem luta contra o racismo tem que combater o colonialismo. E quem combate o colonialismo precisa estar disposto a dar nome às estruturas, ainda que isso custe a reputação, o apoio institucional ou o conforto político.

E é justamente nesse ponto que surgem as tentativas de desvio do debate. Quantas vezes, ao se falar da Palestina, ouvimos a resposta: “mas lá as mulheres são oprimidas”? Como se um povo só tivesse direito à vida e à liberdade depois de provar que compartilha dos valores ocidentais. Não é que os direitos das mulheres não importem, eles importam, e muito. Mas exigir que uma sociedade submetida à ocupação seja exemplar segundo critérios liberais enquanto é bombardeada, sitiada e expropriada é uma forma sofisticada de cinismo. Primeiro, é preciso que essas mulheres estejam vivas. Depois, caberá a elas decidir, em liberdade, o que querem transformar. Enquanto isso, se mais peso é dado à crítica dos costumes do que à morte de crianças, há algo profundamente corrompido no nosso senso de humanidade.

Por muito tempo, olhei com desconfiança para Greta. Hoje, com tudo que está em jogo, prefiro dar o braço a torcer. Não porque ela faz ou diz exatamente o que eu gosto de ouvir, nem porque seu posicionamento conforta as minhas ideias. Mas porque, ao tocar na ferida aberta da Palestina, ela demonstrou uma coragem rara. Ela entendeu algo essencial. Não há justiça climática sem justiça racial. E não há justiça racial sem coragem de confrontar os pactos silenciosos que nos mantêm cúmplices da exclusão.

* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.

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