Uma escolha muito difícil: Míriam Leitão na ABL. Retrato de um Brasil que celebra o privilégio e silencia a diversidade
A entrada de Míriam Leitão na ABL é um gesto político. E, como tal, deve ser lido criticamente
Com formação acadêmica e experiência no campo literário, observo com atenção as escolhas institucionais que definem quem é valorizado e quem é silenciado na cultura brasileira. A eleição da jornalista Míriam Leitão para a Academia Brasileira de Letras (ABL) reacende um debate necessário sobre o papel dessa instituição no Brasil contemporâneo. Fundada em 1897 por ninguém menos que Machado de Assis, um homem negro cuja imagem foi sistematicamente embranquecida ao longo das décadas, a ABL segue, até hoje, sendo um espaço onde as elites intelectuais, majoritariamente brancas e conservadoras, se autopromovem como guardiãs da cultura nacional. Quem não se lembra da campanha da Caixa Econômica Federal, veiculada em 2011, que retratou Machado de Assis como um homem branco? A polêmica foi tamanha que a propaganda precisou ser refeita, escancarando o quanto nossa sociedade insiste em apagar a negritude, mesmo quando ela é inquestionável. O caso de Leitão não foge a essa regra. Ao contrário: ela é sua mais recente expressão.
Míriam Leitão foi, sem dúvida, uma vítima da ditadura militar. Presa grávida, foi torturada. Este episódio brutal não pode ser minimizado. Mas a trajetória posterior da jornalista é marcada por uma guinada ideológica no mínimo desconcertante. Desde os primeiros anos do governo Lula, Míriam Leitão se consolidou como uma das vozes mais críticas às políticas petistas, especialmente no campo econômico. Sua oposição ferrenha à ampliação de programas sociais, ao fortalecimento do papel do Estado na economia e às políticas de redistribuição de renda a colocou em posição antagônica ao projeto político representado pelo PT.
Como colunista econômica, ela se tornou uma das principais porta-vozes do neoliberalismo no Brasil, apoiando agendas de austeridade, privatizações e políticas que aprofundam desigualdades sociais. Sua atuação durante o governo Dilma Rousseff é exemplar: Míriam foi uma das críticas mais ferozes da primeira mulher a ocupar a presidência do país, frequentemente adotando um tom que beirava o desrespeito. Atacava Dilma como economista, como presidenta e como mulher, sempre mascaradas com um verniz técnico que, na prática, servia para desqualificar uma mulher de trajetória impecável na luta pela democracia.
A eleição de Míriam Leitão se torna ainda mais questionável quando lembramos que Conceição Evaristo, escritora negra de projeção internacional, cuja obra tem sido estudada em universidades no Brasil e fora dele, foi preterida. Em 2018, Conceição se candidatou a uma cadeira na ABL e obteve apenas um voto. Um. A autora de romances como Ponciá Vicêncio, Becos da Memória, de contos como Olhos d’Água, e de ensaios fundacionais para a compreensão da escrevivência como epistemologia negra, não foi considerada digna de ocupar uma cadeira na “Casa de Machado”.
A quem serve a Academia? - Qual é, então, o critério da ABL? Que contribuição Míriam Leitão ofereceu à literatura brasileira que justifique sua inclusão? Embora a jornalista tenha publicado livros de ensaios jornalísticos — Saga Brasileira, História do Futuro, entre outros —, eles não se enquadram na produção ficcional ou poética que tradicionalmente sustenta o prestígio da ABL. A resposta parece estar menos na obra e mais na rede de influência, nas alianças políticas e na manutenção de uma certa ideia de Brasil, um Brasil meritocrático, branco, cordial, neoliberal e autocomplacente. Um Brasil que ignora os abismos sociais e raciais sobre os quais foi construído.
A própria história da ABL revela seu papel como reduto das elites. Raquel de Queirós, a primeira mulher a tomar posse na instituição, o fez apenas em 1977, oitenta anos após a fundação da Academia. E não era uma mulher qualquer: Raquel foi simpatizante da ditadura, ligada ao conservadorismo e à defesa de valores tradicionais. Depois dela, é possível contar nos dedos as mulheres que integraram a ABL ao longo de mais de um século de existência: Ao longo de mais de um século, poucas mulheres ocuparam cadeiras na ABL, e é possível literalmente contá-las nos dedos. Entre aquelas que já aram pela instituição, a pioneira Rachel de Queiroz, Dinah Silveira de Queiroz, Lygia Fagundes Telles, Nélida Piñon, Zélia Gattai e Cleonice Berardinelli. Atualmente, apenas seis mulheres integram o quadro de imortais: Ana Maria Machado, Rosiska Darcy de Oliveira, Fernanda Montenegro, Heloisa Teixeira, Lilia Moritz Schwarcz e Míriam Leitão. Uma presença ainda reduzida e profundamente marcada pela ausência de mulheres negras, indígenas ou oriundas das periferias.
Ailton Krenak é uma exceção, eleito apenas em 2023, é o primeiro indígena a ocupar uma cadeira na Academia, 126 anos depois de sua fundação. Uma conquista simbólica, sem dúvida, mas que escancara o atraso e o conservadorismo dessa instituição. Quantos escritores e escritoras realmente transformadores recusaram ou foram recusados pela ABL ao longo da história? João Cabral de Melo Neto resistiu anos até aceitar uma cadeira. Guimarães Rosa também hesitou. Clarice Lispector nunca fez parte. Carolina Maria de Jesus sequer foi cogitada, embora Quarto de Despejo tenha sido traduzido para mais de 13 idiomas e publicado em dezenas de países. Sua obra seguinte, Casa de Alvenaria: Diário de uma ex-favelada, ampliou o retrato da desigualdade brasileira e confirmou seu talento literário, ainda assim ignorado pelas instâncias oficiais de consagração. Estamos, afinal, diante de uma instituição que celebra a literatura ou diante de um clube de recompensas simbólicas para quem se alinha aos interesses dominantes?
A entrada de Míriam Leitão na ABL é um gesto político. E, como tal, deve ser lido criticamente. Não se trata de desmerecer sua história de sofrimento durante a ditadura, mas de entender que a trajetória posterior de Míriam foi marcada pela defesa de ideias que colaboraram para o aprofundamento da miséria, da exclusão e da desvalorização da política como campo de disputa coletiva. Míriam sempre esteve do lado errado da história quando se tratava de defender o povo, os direitos sociais, os governos populares, as mulheres no poder.
A literatura, se ainda é resistência, não pode ser capturada por esse tipo de gesto que premia o alinhamento ideológico e o pertencimento racial e de classe. A ABL, se quisesse mesmo se reconectar com o espírito de Machado de Assis, deveria olhar para as margens. Deveria eleger Conceição Evaristo, Cidinha da Silva, Ana Maria Gonçalves, e, óbvio, não posso deixar de fazer campanha para minhas conterrâneas Socorro Acioli e Tércia Montenegro. Deveria reconhecer os saberes de Jeferson Tenório, Itamar Vieira Junior, Cristiane Sobral, e tantos outros nomes que hoje representam o que há de mais potente na produção literária brasileira. Gente que escreve desde a dor, desde a favela, desde a periferia, desde o corpo que resiste.
A escolha de Míriam Leitão é, portanto, mais um capítulo do vexame histórico que é a persistência de uma elite cultural branca se autolegitimando em nome de uma literatura que ela própria pouco compreende. Uma literatura que, felizmente, pulsa muito além dos muros da Academia.
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