STF e a política
Reconhecer que o Supremo age politicamente é apenas o começo. O mais urgente é debater o que essa política tem produzido
Li com interesse o artigo do professor Fernando Limongi na BBC Brasil. Recomendo a leitura, só desconsiderem a manchete patife da BBC. Ele parte de uma premissa correta: o STF é um tribunal político. Não há corte constitucional que não o seja. Em momentos de crise, esse papel se intensifica. E, quando o Supremo atua para conter ameaças autoritárias, cumpre uma função vital para a sobrevivência do próprio regime democrático. Isso precisa ser reconhecido, sobretudo num país marcado por tentativas recorrentes de ruptura institucional.
Não se trata aqui de dissecar o artigo de Limongi. Não é esse o espaço, nem o objetivo. Sua leitura é instigante, coerente e oferece uma defesa respeitável da atuação do Supremo como instituição moderadora. Mas talvez o que mereça atenção, como ponto de partida para uma crítica mais profunda, é o que o texto não enfatiza: o conteúdo da política exercida pela Corte. Porque se o STF é um ator político, o que está em disputa é qual política tem sido praticada.
Nos últimos anos, a Corte acumulou decisões que revelam um padrão nítido. Validou a terceirização irrestrita, inclusive para atividades-fim. Apoiou a supremacia do negociado sobre o legislado, mesmo diante de acordos que suprimem direitos conquistados historicamente. Confirmou a legalidade do trabalho intermitente. Enfraqueceu a Justiça do Trabalho e o direito de greve no setor público. Também chancelou processos de privatização sem necessidade de lei específica, relativizando o papel do legislativo e o controle popular sobre o patrimônio público. São decisões que têm pouco de neutras e muito de alinhamento com a racionalidade do mercado.
Em todas essas frentes — trabalho, economia, finanças públicas — o STF tem atuado não como um tribunal técnico, mas como um agente de uma política econômica liberal, que flexibiliza direitos, blinda o ajuste fiscal e normaliza a desigualdade como se fosse um dado inescapável. O discurso da técnica, da segurança jurídica, da modernização, aparece como cobertura. Mas por trás dele há escolhas ideológicas claras, quase sempre orientadas pela contenção dos direitos sociais e pela supremacia da lógica financeira sobre a distributiva.
É fundamental frisar: decisões sobre direitos trabalhistas, regulamentações econômicas ou mediações em processos de privatização não são questões técnicas. São decisões políticas, com implicações profundas sobre o tipo de sociedade que se quer construir. À luz da Constituição de 1988, essas escolhas deveriam ser pautadas pela primazia dos direitos sociais, da dignidade da pessoa humana e da justiça distributiva. Quando se desconsidera esse horizonte, o direito se transforma em instrumento de reprodução das desigualdades, ainda que falado em latim.
Essa política, ainda que juridicamente embalada, não é neutra. Ela aprofunda o desequilíbrio social e enfraquece o projeto constitucional de 1988, que é, em seu núcleo, um pacto de reconstrução nacional baseado na ampliação da cidadania e na dignidade do trabalho. Quando a Corte age em defesa da ordem democrática diante de ataques golpistas, ela cumpre um papel essencial. Mas quando atua para proteger os interesses dos mercados em detrimento da classe trabalhadora, ela rebaixa esse mesmo projeto democrático ao limitar seu alcance transformador.
É importante reconhecer os méritos e a relevância institucional do STF. Mas também é necessário lembrar que equilíbrio democrático não é apenas estabilidade entre os poderes. É, sobretudo, capacidade de fazer justiça entre desiguais. E nisso, a Corte tem falhado ou, inocência às favas, reafirmado seus propósitos.
Reconhecer que o Supremo age politicamente é apenas o começo. O mais urgente é debater o que essa política tem produzido. E por que, tantas vezes, ela se distancia das promessas inscritas em 1988. Afinal, de que serve um tribunal politicamente ativo se, no final das contas, continua tecnicamente calado quando a injustiça é feita com luvas e linguagem de toga?
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