O alcance do julgamento
"Ver Bolsonaro prestando depoimento, cercado de advogados, se desculpando sem dizer que se desculpa, é outro marco"
Sim, é histórico. Generais e coronéis no banco dos réus por tramarem um golpe contra as instituições que juraram defender. A cena, por si, desmonta décadas de silêncio conveniente. A caserna sempre agiu como se estivesse acima da lei. Não está. Essa imagem, por mais tardia que seja, rasga o verniz e mostra o que sempre esteve ali: o projeto autoritário que move parte significativa das Forças Armadas brasileiras desde muito antes de 1964.
Ver Bolsonaro prestando depoimento, cercado de advogados, se desculpando sem dizer que se desculpa, é outro marco. Não pelo conteúdo — raso, calculado —, mas pela performance desidratada de quem sempre se vendeu como mito. Diante de Alexandre de Moraes, encenou submissão. Não houve altivez, nem coragem. O homem que prometia romper tudo e todos se apequenou, decepcionando os que ainda esperavam um traço de firmeza no naufrágio.
Essa encenação, no entanto, não deve nos embriagar. Há algo ali que desalinha, que trava no peito de quem assiste com atenção. O ambiente parecia amortecido. As perguntas, controladas, evitavam confronto direto. O julgamento não se organizou como arena, mas como encenação contida — como se fosse preciso manter o gesto dentro de um escopo já delimitado. Essa contenção, é verdade, teve efeito prático: desmontou, sem esforço, as teses frágeis da defesa, deixando-as expostas ao ridículo. Mas não se tratava só de desmontar. Havia cálculo. As maiores fissuras não vieram das perguntas, mas das risadas e ironias de Moraes, que deixaram claro o desprezo pelo que estava diante dele: um ex-presidente constrangido, velhos fardados com gestos de farsa, figuras que já não impõem medo, apenas descrença. Ainda assim, a suavidade foi uma escolha. Não pela elegância — mas porque há, no fundo do processo, um limite tácito sobre até onde se está disposto a levar esse confronto.
Não é por acaso. O Brasil é especialista em conter crises sem desmontar seus alicerces. Virar a página sem ler o último parágrafo. Há uma tecnologia acumulada desde o início da República. As forças que operaram a tentativa de ruptura continuam orbitando e servindo aos centros de decisão. Ora são convenientes, ora são escamoteadas. A estrutura permanece, só muda a forma. Não se trata de um enfrentamento com o autoritarismo de farda ou terno, mas de uma istração calculada dos seus efeitos. Um gerenciamento do trauma e da trama que evita romper os acordos que seguem funcionando.
Não foi a ausência de réus importantes — eles estavam lá ontem, alguns presos, outros expostos. A questão é a capacidade do sistema de conduzir o processo sem alterar seus fundamentos, sem mexer no seu ethos. Afinal, ele é sistema. O julgamento avança, mas os dispositivos de poder que permitiram a tentativa de ruptura seguem preservados. O que se desenha não é uma ruptura com a lógica golpista, mas sua acomodação dentro da normalidade institucional. Novamente, o gesto é de contenção, não de expurgo. O golpe é tratado como episódio isolado, não como expressão de uma continuidade histórica que ainda encontra abrigo no interior do próprio Estado.
Também não é o caso de agir com niilismo e sair exigindo uma refundação imediata do regime. A política raramente se move por gestos totais. Há nuances que importam, deslocamentos que, mesmo sutis, reconfiguram o terreno. O julgamento em curso, ainda que contenha ambiguidades e limites, expõe contradições que estavam protegidas por décadas de pacto e silêncio. O essencial é saber interpretar o que essas fissuras indicam, qual o grau de instabilidade que introduzem e até onde podem ser tensionadas. Não se trata de superestimar os gestos, mas também não se deve esvaziá-los. Há algo em disputa — e o peso dessas mudanças depende da nossa capacidade de nomeá-las, pressioná-las, disputá-las.
Os próximos movimentos vão depender menos da contundência jurídica e mais da correlação de forças que se redesenha nos bastidores. Se o processo for até o fim, pode abrir um precedente incômodo para os setores que historicamente operam nos limites da legalidade. Se for freado, reabilita os atores golpistas e sinaliza que o sistema a esse tipo de abalo sem custos duradouros. Em qualquer cenário, o julgamento vai funcionar como termômetro: não do ado recente, mas do que ainda está em disputa no presente — quem controla os termos da exceção, quem decide quando ela começa e, principalmente, quando ela pode ser esquecida.
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