Mujica, um homem e suas circunstâncias
Mujica foi guerrilheiro, preso político, senador, presidente. Viveu em silêncio forçado e aprendeu a falar devagar
“Eu sou eu e minhas circunstâncias.”
A frase de Ortega y Gasset, tantas vezes usada para justificar ambivalências, aqui ganha peso real. José Mujica morreu hoje. E com ele vai uma das figuras mais singulares da política latino-americana recente — não por ser exceção, mas por ter atravessado o tempo com coerência e contradição, lado a lado.
Mujica foi guerrilheiro, preso político, senador, presidente. Viveu em silêncio forçado e aprendeu a falar devagar. Governou um país marcado por uma longa tradição republicana, que também conheceu uma ditadura violenta, com censura, repressão e tortura que ele sofreu na pele. Um país peculiar, com população reduzida e com uma escala específica de problemas. Suas decisões foram marcadas por prudência, e não por medo. Sabia que a política é terreno minado — e preferiu não pisar em todas as minas de uma vez.
Seu pragmatismo não foi apenas por cálculo — foi respeito pelas reais condições, pela experiência, pela conjuntura, pela sobrevivência coletiva. Fez reformas sociais importantes, sem prometer o que sabia não poder entregar. Não enfrentou os grandes interesses econômicos, e talvez por isso tenha conseguido avançar onde tantos naufragaram. Conciliação, ali, era tática e convicção. Gostemos ou não.
É por isso que Mujica foi transformado em símbolo: porque pareceu possível ser decente e eficaz, sem perder a humanidade no caminho. Mas o fascínio que ele desperta — sobretudo numa esquerda de classe média deslumbrada com gestos éticos e biografias limpas — chega a ser injusto para sua trajetória política muito mais complexa. Mujica é visto pelas coisas das quais abriu mão — o velhinho folclórico do fusca —, mas o que o diferencia é que nunca negou a política e seus percalços e abraçou a luta com lealdade e inteligência.
Compará-lo a Lula, como alguns fazem de modo apressado, é ignorar o essencial: o Uruguai não é o Brasil. Existe uma assimetria enorme. Mujica presidiu um país de três milhões de habitantes. Lula, um continente desigual de duzentos milhões, conseguiu alguns avanços e uma oposição implacável. Ambos conciliaram. Ambos vieram de baixo. Mas a escala, o conflito e a ferocidade são outras. Um país permite certos gestos simbólicos; o outro exige permanente reinvenção.
Hoje, Mujica se despede. Morre com ele parte de uma geração que radicalizou, se reinventou e envelheceu. Não foi herói nem mártir. Foi político — no melhor sentido da palavra. E isso, em tempos de ódio cínico, arrivismo e performance vazia, é raríssimo.
O lema dos Tupamaros, o grupo armado marxista pelo qual atuou, era claro em sua politização e contradições:
“Palabras nos dividen, acciones nos unen.”
Boa viagem, camarada.
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