A vitória soviética e a disputa pela memória da Segunda Guerra
A Guerra Fria transformou a memória em campo de batalha, e a disputa segue viva
Hoje, 8 de maio de 2025, completam-se oitenta anos da rendição do Exército Alemão em 1945. E ainda hoje, mais do que nunca, é essencial dizer com todas as letras o que foi a Segunda Guerra Mundial e, sobretudo, como ela de fato aconteceu. É revoltante constatar que, oito décadas depois, continuemos enfrentando campanhas deliberadas de distorção, falsificações históricas grosseiras e apagamentos calculados do papel central da União Soviética na derrota do nazismo. Mas minha indignação não nasce da surpresa, e sim da persistência. Conhecemos os motivos: a Guerra Fria transformou a memória em campo de batalha, e a disputa segue viva. Não se trata apenas de relembrar datas e eventos, mas de afirmar com clareza os sentidos históricos de um conflito que reorganizou o século XX e continua sendo objeto de disputa política e ideológica.
O pacto contra a URSS e o estopim da guerra
Em 1936, Alemanha e Japão assinam o Pacto Anticomintern, dirigido explicitamente contra a União Soviética. Esse acordo não era apenas simbólico: previa cooperação em inteligência, repressão ao comunismo internacional e alinhamento diplomático nas ações contra o avanço soviético. Pouco tempo depois, a Itália fascista adere ao pacto, ampliando o bloco ideológico e militar que viria a compor o chamado Eixo. Documentos da época, incluindo trocas entre os ministérios de relações exteriores dos três países, mostram a intenção clara de isolar e, se possível, desestabilizar a URSS. O pacto serviu como base para posteriores agressões territoriais e diplomáticas que ignoravam acordos multilaterais. Antes mesmo dos primeiros disparos, o mundo já estava dividido entre os que queriam destruir a experiência soviética e os que teriam, depois, de resistir ao fascismo.
O acordo de Munique: França e Inglaterra sacrificam a Europa Oriental
Em 1938, ocorre a comprometedora do Acordo de Munique. França e Inglaterra entregam os Sudetos a Hitler sem resistência, legitimando suas pretensões expansionistas e traindo a Tchecoslováquia. A justificativa era a de que se evitava uma nova guerra, mas o que se fazia, na prática, era permitir a expansão territorial do nazismo às custas da Europa Central. Stalin entende o recado: a URSS está sozinha diante da ameaça fascista e, mais do que isso, o Ocidente parece disposto a empurrar a máquina de guerra alemã para o Leste. Em agosto de 1939, o pacto Molotov-Ribbentrop é assinado. Não por afinidade, mas por cálculo estratégico. Com a recusa ocidental em firmar uma aliança antifascista real, o pacto foi a única forma de ganhar tempo. Nos meses que se seguiram, a URSS incorporou territórios bálticos, reforçou suas defesas e deslocou unidades militares para regiões-chave. A diplomacia havia falhado, e a guerra era inevitável. Restava reorganizar o país para enfrentá-la. A cláusula secreta do pacto, revelada mais tarde, previa a divisão da Polônia e de áreas da Europa Oriental em zonas de influência. Esse ponto é frequentemente usado por revisionistas para equiparar nazismo e comunismo, ignorando que o pacto, além de resultado da recusa ocidental em formar uma frente antifascista, foi uma manobra para ganhar tempo diante da certeza da guerra.
O Exército Vermelho e a virada da guerra
Em 22 de junho de 1941, a Alemanha lança a Operação Barbarossa e rompe o pacto, invadindo a União Soviética com mais de três milhões de soldados em uma frente de quase 3 mil quilômetros. A ofensiva foi brutal: nas primeiras semanas, cidades foram bombardeadas, colheitas incendiadas e milhões de civis e soldados soviéticos capturados ou mortos. Mas o impacto inicial deu lugar à resistência. O Exército Vermelho, apesar das perdas iniciais, reorganizou-se com velocidade impressionante. A mobilização total da sociedade soviética — operários, camponeses, mulheres, crianças — transformou a guerra em uma luta de sobrevivência nacional. A batalha de Moscou, no fim de 1941, marcou o primeiro grande revés para Hitler. Nos anos seguintes, viria a virada definitiva em Stalingrado. Sob a liderança de Stalin — que, como qualquer comandante político em tempos de guerra, errou e acertou — e a tática de Zhukov e outros generais, a URSS não apenas resistiu, mas iniciou a longa marcha até Berlim. Foi o Exército Vermelho que manteve a linha, virou o jogo e esmagou o coração militar do Eixo.
A resistência armada na Europa ocupada
Enquanto os grandes exércitos colidiam nos fronts, grupos de resistência armada atuavam em países ocupados, dificultando a logística e moral nazista. Os partisans iugoslavos, liderados por Josip Broz Tito, criaram uma frente de guerrilha que libertou territórios inteiros sem a ajuda direta dos Aliados. Na França, os maquis sabotavam ferrovias, atacavam comboios e forneciam inteligência à frente ocidental. Essas resistências, embora nem sempre coordenadas com os Estados-Maiores Aliados, foram decisivas para atrasar operações e manter viva a chama do antifascismo nos territórios ocupados.
As frentes esquecidas: Norte da África, Itália e Ásia
A narrativa centrada no front leste e no Dia D muitas vezes obscurece outras frentes importantes. Em El Alamein (1942), no Egito, os britânicos detiveram o avanço do Afrika Korps de Rommel, marcando um ponto de virada no Norte da África. Em seguida, os Aliados invadiram a Sicília e a Itália (1943), forçando Mussolini a cair e obrigando os alemães a redistribuir tropas. Do outro lado do mundo, desde 1937, a China combatia o Japão em uma guerra devastadora que imobilizou grande parte do exército imperial japonês. Essas frentes, embora secundárias diante da escala soviética, contribuíram para diluir os esforços do Eixo e evidenciam que a guerra foi, de fato, mundial. Em agosto de 1945, poucos dias após o lançamento das bombas sobre Hiroshima e Nagasaki, a União Soviética declarou guerra ao Japão e lançou a Operação Tempestade de Agosto na Manchúria. A ação, rápida e fulminante, desmantelou o exército de Kwantung e foi decisiva para precipitar a rendição japonesa. O episódio reforça o papel da URSS também na conclusão do conflito no teatro asiático.
Teerã, Yalta e o cálculo dos Aliados
A pressão soviética por uma segunda frente finalmente encontrou resposta na Conferência de Teerã, em 1943, quando Stalin, Roosevelt e Churchill definiram as bases da ofensiva final contra o nazismo. Ficou acordado que os EUA e a Inglaterra abririam a frente ocidental em 1944. A Conferência de Yalta, em fevereiro de 1945, consolidou a partilha da Europa do pós-guerra, reconhecendo a presença soviética no Leste Europeu. Essas reuniões não apenas coordenaram ações militares, mas selaram compromissos geopolíticos. Negar hoje o papel da URSS na vitória é apagar acordos firmados pelos próprios líderes ocidentais.
O atraso dos Aliados e o Dia D
Enquanto isso, os Aliados ocidentais hesitavam. A segunda frente, pedida desde 1941, só se concretizou em 1944. Quando ocorre o Dia D, o desembarque de mais de 150 mil soldados aliados nas praias da Normandia, em 6 de junho, o Eixo já estava sendo desmontado pelo avanço soviético. A operação foi decisiva para a libertação da França Ocupada, mas sua chegada tardia revela o desequilíbrio no esforço de guerra. O Exército Vermelho já havia empurrado a Wehrmacht de volta através da Ucrânia, Bielorrússia e Lituânia. Estimativas históricas indicam que mais de 80% das tropas alemãs estavam comprometidas no front oriental no momento do desembarque. Além disso, os documentos das próprias forças armadas alemãs revelam que a pressão exercida pelo avanço soviético obrigou o Alto Comando nazista a redistribuir contingentes que, de outro modo, poderiam ter reforçado a resistência na Normandia. O Dia D foi importante, mas não foi o ponto de virada: a espinha dorsal da máquina de guerra alemã já havia sido fraturada no Leste.
A vitória soviética
Celebrar o 8 de maio é reconhecer isso: o papel central da União Soviética na derrota do nazismo. A vitória foi forjada antes de Normandia, em Moscou, Kursk, Leningrado, Stalingrado. Mais de 27 milhões de soviéticos perderam a vida na guerra, entre soldados e civis. Foi o povo soviético, esmagado e insurgente, que impediu o triunfo do fascismo. E foi o Exército Vermelho que derrotou, em campo, a mais poderosa máquina militar do século, cruzando o Dniepre, avançando pela Polônia, libertando Auschwitz, cujas imagens revelaram ao mundo a escala do genocídio nazista. O Exército Vermelho, ao avançar pelo Leste Europeu, não apenas derrotou divisões militares, mas desvelou os horrores de uma guerra racial e ideológica. A libertação de campos como Majdanek, Sobibor e Auschwitz fez da vitória soviética também uma vitória sobre a barbárie antissemita. vencendo em Budapeste e Viena, até chegar a Berlim. Nenhuma outra força aliada enfrentou tamanha extensão, volume de combate e sacrifício humano. Essa vitória teve nome, geografia e sangue soviéticos.
A lenda dos super-ianques
A resistência soviética costuma ser apagada por um discurso que superestima a ajuda material dos Estados Unidos. De fato, o programa Lend-Lease forneceu caminhões, locomotivas, alimentos e materiais diversos à URSS. No que diz respeito ao transporte logístico — caminhões, jeeps, trens e navios — a contribuição estadunidense foi significativa e ajudou a dar mobilidade ao Exército Vermelho em fases posteriores da guerra. No entanto, a maior parte desse auxílio só chegou após 1943, quando as grandes batalhas defensivas soviéticas já haviam sido travadas e vencidas com recursos próprios. Apenas 4% dos armamentos utilizados pela URSS vieram do Ocidente. Enquanto isso, a União Soviética produziu mais de 100 mil tanques e quase 160 mil aeronaves, além de mobilizar mais de 30 milhões de pessoas para o esforço de guerra. Os números falam por si: mais de 80% das perdas da Wehrmacht ocorreram no front oriental. Ignorar isso é reduzir uma vitória sangrenta a um rodapé diplomático. Mesmo dentro da historiografia ocidental, autores como Richard Overy (Russia’s War), Antony Beevor (Stalingrad) e Geoffrey Roberts (Stalin’s General) reconheceram o peso esmagador da frente oriental e o papel decisivo do Exército Vermelho. Ignorar essas vozes é escolher deliberadamente o esquecimento.
A engenharia da memória na Guerra Fria
Reescrever essa história, como tentam alguns, não é só ignorância. É estratégia. Desde a Guerra Fria, os Estados Unidos promoveram um projeto cultural de reinterpretação dos acontecimentos. Isso se fez por meio de filmes de Hollywood, romances históricos, currículos escolares e parte significativa da produção acadêmica alinhada aos interesses do Ocidente. Manuais didáticos aram a destacar o Dia D como ponto de inflexão da guerra, enquanto relegavam Stalingrado e Kursk a notas de rodapé. A propaganda visual norte-americana, com cartazes e noticiários de guerra, retratava os EUA como salvadores do mundo livre. Ao mesmo tempo, toda menção ao esforço soviético era filtrada pela retórica anticomunista. Criou-se, assim, uma imagem coletiva em que a vitória foi exclusivamente ocidental, apagando o papel da URSS e distorcendo profundamente a percepção pública sobre a guerra. A instrumentalização da memória não terminou com a Guerra Fria. Na Rússia contemporânea, o culto à Grande Guerra Patriótica é frequentemente usado pelo Estado para legitimar narrativas de unidade nacional e projetos geopolíticos. O 9 de Maio, Dia da Vitória, transformou-se em espetáculo político-militar que mistura memória histórica legítima com nacionalismo estratégico.
A repetição ideológica da nova direita
A nova direita repete esse roteiro com ainda menos rigor e mais cinismo. Recupera chavões da Guerra Fria e tenta aplicar fórmulas anacrônicas a debates históricos. Em redes sociais, programas de opinião e até em instituições de ensino, dissemina versões distorcidas da Segunda Guerra para reforçar suas pautas anticomunistas. Inventa que o pacto de 1939 foi uma aliança nazicomunista. Minimiza Stalingrado ou o apresenta como uma vitória cruel, descolada de qualquer contexto de autodefesa. Coloca Stalin e Hitler na mesma prateleira, como se a história fosse uma equação moral simplista e simétrica. E omite deliberadamente que tanto Churchill quanto Roosevelt estabeleceram alianças estratégicas com a União Soviética durante a guerra, reconhecendo seu papel essencial na derrota do nazismo. Em nome de uma suposta “verdade histórica”, tenta restaurar visões binárias, apressadas e confortáveis, que falseiam o ado e obscurecem o presente.
A importância de escrever um texto que parece reiterar o óbvio é essa: não é óbvio para todas as pessoas que foram e são massacradas por propaganda revisionista, versões preguiçosas e leituras apressadas. Não escrevo por nostalgia, nem por doutrina. Escrevo porque acredito que a história — mesmo nas suas zonas mais conhecidas — precisa ser relida com atenção, responsabilidade e alguma coragem. Reafirmar o protagonismo soviético não é fechar os olhos para os crimes do regime, mas recusar a ideia de que a verdade histórica pode ser moldada à imagem do poder de turno. E nesse gesto, mesmo simples, talvez resista algo de digno.
* Este é um artigo de opinião, de responsabilidade do autor, e não reflete a opinião do Brasil 247.
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